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Pitty se solta e se expande ao passar a Bahia pelo filtro do rock no disco ‘Matriz’
Eu me domestiquei / Pra fazer parte do jogo / Mas não se engane, maluco / Continuo bicho solto”, avisa Pitty no refrão de Bicho solto (Pitty), música que abre o quinto álbum de estúdio dessa cantora, compositora e instrumentista baiana.
Em gravação que evoca ruídos do temporal noturno de Dorival Caymmi (1914 – 2008) entre ecos imaginários de Raul Seixas (1945 – 1989) e toques de percussão corporal, a artista já marca posição e território nessa faixa inicial.
Roqueira pela própria natureza, mulher que nunca se deixou estranhar em ninho ainda predominantemente masculino, Pitty foi a mosca que pousou na aguada sopa emo empurrada goela abaixo do Brasil pela indústria do rock ao longo dos anos 2000.
A caminho dos 42 anos (a serem festejados em outubro deste ano de 2019) e mãe de Madalena desde 2016, Pitty cresceu e amadureceu artisticamente em público. Saiu da Bahia e fez com que a Bahia saísse dela, afastando todos os santos da discografia quando era preciso se afirmar para manter hasteada, bem alto, a bandeira do rock.
Capa do álbum ‘Matriz’, de Pitty — Foto: Otávio de Souza
Matriz, álbum que chega hoje ao mercado fonográfico pela Deck, já flagra Pitty sem precisar provar nada a ninguém. E é justamente nesse momento de plenitude que ela, bicho solto, faz o retorno e se reencontra com a Bahia natal sem se apegar aos clichês da terra.
Em Matriz, a Bahia é passada pelo filtro do rock. E não o contrário. A Bahia está viva ainda lá, no ar ancestral da voz afro-soul de Lazzo Matumbi, ouvida ao fundo em Noite inteira (Pitty, Martin e Gui Almeida), rock de refrão matador previamente apresentado como segundo singledo álbum.
Sim, rock. Matriz se impõe de imediato como um álbum de rock, fugindo do perigo de ser caracterizado como o “disco mais brasileiro” de Pitty. E o rock de Pitty tem peso em todos os sentidos possíveis, como evidencia Ninguém é de ninguém (Pitty e Daniel Weskler), música formatada pelo produtor do disco, Rafael Ramos, como hardcore que incorpora batidas sintéticas sem perda do peso. A letra prega liberdade afetiva.
Pitty regrava ‘Motor’, bela balada de Teago Oliveira lançada em 2013 em disco da banda Maglore — Foto: Otávio de Souza / Divulgação
É com a vibe roqueira que Pitty aciona todo o doído lamento blues contido na balada Motor (Teago Oliveira, 2013), grande música da banda baiana-paulistana Maglore que somente perde algum impacto, na bela gravação de Pitty, para quem já ouviu o mesmo Motor ser reposto em movimento por Gal Costa no corrente show A pele do futuro (2018 / 2019).
Na disposição do álbum Matriz, a canção Motor é seguida por vinheta falada, Saudade, que se conecta com o sentimento que perpassa a balada existencialista de Teago Oliveira.
Entre as duas vinhetas faladas do disco, Saudade e Azul (“Nunca é tarde demais para voltar para o azul que só tem lá”, referência ao litoral soteropolitano), a artista abre Roda (Pitty, Roberto Barreto e Russo Passapusso) em parceria de peso com a BaianaSystem.
Pitty evoca a cidade de Salvador (BA) sem nostalgia e com som contemporâneo — Foto: Otávio de Souza / Divulgação
Produzida por Rafael Ramos com Seko Bass, a faixa conecta Pitty com a fantástica Bahia contemporânea que se distancia do colorido universo musical da axé music, cartão postal musical da terra, sem repudiar o colo matricial da África.
“Essa roda nos abraça, essa gira é pra girar / É só chegar no barracão que o couro vai dobrar / Só não mexa no meu jeito de dançar”, pondera Pitty, mas uma vez marcando posição e território, sob o batidão explosivo de Roda.
No giro do álbum Matriz, a música Bahia blues (Pitty) refaz o percurso biográfico da roqueira de Salvador (BA) em rota que inclui rodas de pogo, manifestações da religiosidade sincrética da terra e incursões pelo submundo de uma Bahia retratada sem nostalgia romântica e com a ebulição sonora contemporânea do synth e do lap steel pilotados por Paulo Kishimoto, músico que forma com Daniel Weskler (bateria), Gui Almeida (baixo) e Martin (guitarra e violão) a banda-base do disco.
“Eu vim de lá, mas não posso mais voltar”, sentencia Pitty, sepultando qualquer ranço de saudade improdutiva com a consciência de que ninguém é a mesma pessoa ao pôr duas vezes o pé no Rio Vermelho.
A baiana sabe que o oceano é vasto como o mundo. Música lançada em agosto de 2018 para anunciar o álbum e o show da turnê Matriz, Te conecta é o mergulho de Pitty nas águas jamaicanas que também banham a cidade de Salvador (BA).
Pitty reúne Lazzo Matumbi e Larissa Luz em ‘Sol quadrado’, música que fecha o álbum ‘Matriz’ — Foto: Otávio de Souza / Divulgação
Única faixa produzida por Pupilo, Redimir (Pitty) reaviva a Bahia em terra firme quando parece abrir a roda de capoeira na batida do rock entranhada na matriz do som de Pitty, mas com a percussão e a programação a cargo do próprio Pupillo.
Até pelo som cheio de pressão e potência, efeito das exemplares mixagem (feita por Rafael Ramos e Vitor Farias no estúdio carioca Tambor) e masterização (feita por Chris Gehringer no Sterling Sound, estúdio dos Estados Unidos), o álbum Matriz se impõe como o melhor da discografia de Pitty.
O círculo se fecha. Tudo se encaixa, até a levada roqueira que dilui a doçura de Para o grande o amor, música possivelmente incluída no álbum para fazer afago póstumo em Peu Souza (1977 – 2013) , autor dessa canção, lançada em disco pela banda carioca Folks em 2015, dois anos após a morte do compositor e músico, projetado como guitarrista da banda de Pitty de 2002 a 2005.
Submersa (Pitty) – fluente balada encorpada com a pressão do rock – e Sol quadrado (Pitty), pseudo-reggae reflexivo gravado pela “roqueira baiana” com os expressivos vocais dos conterrâneos Lazzo Matumbi e Larissa Luz, arredondam um álbum coeso que mostra que Pitty sabe se soltar e se expandir sem sair do jogo. (Cotação: * * * * *)